Em recente decisão publicada no último dia 14/01, a 1ª Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, em julgamento unânime, manteve uma decisão de primeira instância proferida no âmbito de mandado de segurança impetrado contra a Vigilância Sanitária de São José do Rio Preto, por uma farmácia de manipulação sediada no mesmo município, determinando que a autoridade reguladora se abstenha de impor restrições à impetrante da ação, a Biomagistral Farmacêutica Ltda. ME, no que diz respeito à aquisição, manipulação e dispensação de produtos compostos por derivados da Cannabis Sativa (“Cannabis”), desde que cumpridos todos os requisitos legais aplicáveis.
Na fundamentação do seu voto, o desembargador relator do recurso, Rubens Rihl, acompanhado na íntegra por seus pares, em consonância com a jurisprudência do Tribunal Bandeirante sobre o tema, entendeu ser ilegal a autuação promovida pela Vigilância Sanitária de São José do Rio Preto contra a autora da ação, baseada em normativa da Agência Nacional de Vigilância Sanitária – ANVISA, objeto da Resolução da Diretoria Colegiada (RDC) nº 327/2019 que, no artigo 53, caput, ao permitir a dispensação de produtos derivados da Cannabis exclusivamente às farmácias sem manipulação, o fez instituindo uma verdadeira diferenciação destas com as farmácias que manipulam medicamentos, privilegiando as primeiras em detrimento das segundas, o que, conforme ponderou o desembargador, carece de base legal e extrapola a competência reguladora da ANVISA.
A mencionada RDC 327/2019 dispõe sobre os procedimentos de concessão da Autorização Sanitária para a fabricação e a importação de produtos à base de Cannabis para fins medicinais, bem como disciplina os requisitos para a comercialização, prescrição, dispensação, monitoramento e fiscalização dos produtos dela derivados, sendo que, a respeito da dispensação destes produtos, referida norma estabelece a competência exclusiva dessa atividade às drogarias convencionais, ou seja, àquelas que não manipulam medicamentos, excluindo, portanto, referida atividade das farmácias de manipulação.
A este respeito, a decisão de primeira instância mantida na íntegra por oportunidade do julgamento do recurso pelo TJ-SP, ao esclarecer o excesso na competência legislativa da ANVISA, destacou, ainda, que as normativas editadas por esta Autarquia, por hierarquia legislativa, subordinam-se às legislações hierarquicamente superiores que, a este respeito, não fazem diferenciação entre as referidas espécies de farmácias. Nesse sentido, ao citar a diferenciação conceitual entre as farmácias que manipulam e as que não manipulam fórmulas magistrais e oficinais, conforme definição da Lei Federal nº 13.021/2014, o desembargador relator do recurso esclareceu que por definição, as farmácias de manipulação possuem um espectro de atividades maior do que as drogarias convencionais, de modo que, em sendo o caso de cogitar-se qualquer restrição, a mesma deveria aplicar-se às drogarias convencionais e jamais o contrário.
A decisão proferida pelo Tribunal Paulista representa uma significativa conquista para todo o setor farmacêutico que, de forma indireta, se beneficia de uma importante jurisprudência favorável ao exercício menos restritivo de suas atividades, especialmente no que se refere à atuação da ANVISA. Nesse mesmo sentido, ao ressaltar a primazia do princípio constitucional da legalidade, segundo o qual qualquer restrição de direitos deve ser precedida de uma legislação competente que a imponha, a decisão em comento reflete, ainda, um importante precedente aos demais setores regulados da economia, como, por exemplo, a saúde, energia elétrica, transporte terrestre e petróleo, ao passo que alerta a necessidade de atuação adequada e nos limites de suas competências e finalidades por parte das suas agências reguladoras.
As agências reguladoras são pessoas jurídicas de direito público, criadas por lei e organizadas na forma de autarquias especiais, a quem compete o exercício das atividades de regulamentação e fiscalização da prestação de serviços públicos, executados por empresas privadas, de forma a garantir a qualidade e segurança desses. Para consecução das suas finalidades, às agências reguladoras é concedia a necessária competência normativa que as habilita a definir determinadas regras a serem observadas pela iniciativa privada, em sua grande maioria editadas na forma de Decretos-Regulamentares, Instruções Normativas, Portarias, Circulares e outras espécies normativas infralegais.
Em termos práticos, a decisão proferida pela 1ª Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça de São Paulo chama atenção, neste contexto, para a limitação da competência legislativa por uma agência reguladora, neste caso a ANVISA, ressaltando a indispensabilidade de mecanismos de compatibilização entre as normas, especialmente àquelas hierarquicamente superiores às editadas pelas agência reguladoras, para que, então, novas intervenções judiciais a este respeito não tornem a ser necessárias.
Adicionalmente, para além do exercício adequado da competência normativa da ANVISA, especialmente no que se refere às farmácias de manipulação, é oportuno destacar a necessidade de fortalecimento da sua competência fiscalizadora, de modo a garantir uma atuação mais efetiva na auditoria dos processos de controle de qualidade de produtos, especialmente de medicamentos para uso humano e veterinário, e apuração da procedência e qualidade dos insumos utilizados nos processos de formulação de medicamentos.
Por fim, cumpre informar que a respeito do mencionado julgamento pelo TJ-SP, a decisão proferida ainda não transitou em julgado e é passível de recurso aos Tribunais Superiores.